terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

"Vem o senhor", Rosa Lobato Faria

Ergues-te muito cedo e, ainda antes d’alba, o palafreneiro sela o teu incansável cavalo e partes a galope como se daí dependesse a tua vida. Eu fico a acenar-te da barbacã, mas tu não te voltas e, mesmo que o fizesses, o meu vulto, dissolvido nas brumas ainda densas da aurora, não o distinguirias das paredes sombrias do castelo.

Tu vais e eu fico. É esse o destino da mulher. Queria montar o teu corcel, cavalgar abraçada a ti por penhascos e matagais, sentir as batidas do meu peito na lã do teu capote, presos os meus joelhos no calor da montada, soltos na ventania os meus cabelos negros.

Eu fico. Enfeito a casa e o coração para a hora do teu regresso, choro de ausência, canto de expectativa, e se demoras, todos os receios se apoderam da minha saudade e ponho a casa em alvoroço e sacudo ampulhetas e vigio a cozinha. Ninguém pode pensar em descansar, em largar o seu posto, porque o caldo tem de manter-se quente no caldeirão de ferro, o cabrito no ponto, os miúdos de galinha aromáticos no seu molho de ervas, e a cabidela não pode avinagrar, nem o vinho azedar. O pão, mando enrolá-lo em panos húmidos para que, à hora da tua ceia tardia, seja torrado ao de leve e saiba a fresco.

E tu não vens e a minha inquietação toma conta de tudo, porque te imagino atacado por lobos, ameaçado por ursos, ou sacudido da tua montada, caído numa ravina, sangrando entre penedos, e acendo todas as velas do meu pequeno altar de Nossa Senhora dos Aflitos, e faço Benta subir mil vezes os degraus em caracol da torre, sondar a noite, descobrir no voo de algum milhafre caçador um sinal da tua presença sete léguas ao redor, penetrar as sombras com os seus olhos gastos, e a paciência infinita para ouvir-me perguntar outra e outra e outra vez

Benta, vem o senhor?

E por fim tu chegas, porque só eu te sou abrigo e refrigério. É no meu leito que descansas o corpo e a alma, é na minha pele que amacias as mãos calejadas do arco.

(…)


Porque eu sou o caminho. O caminho secreto que te leva às fontes do prazer, aos lugares míticos, aos mares enfeitiçados.

Eu sou a floresta. A floresta de recantos secretos, de grutas azuis, de pássaros exóticos.

Eu sou o teu destino e a tua viagem.


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