terça-feira, 6 de julho de 2010

Estou deitado sobre o lado esquerdo, de olhos fechados, imóvel, mas não estou adormecido nem sequer sonolento. É a minha posição de invocar-te, de poder esvaziar o espírito para receber a tua presença imaginária. Nesta imobilidade tomo muita consciência do meu corpo. O joelho direito pesa-me sobre o esquerdo. Osso com osso faz doer. Questão de dois centímetros, procuro uma almofadinha de músculo e fico bem. As mãos estão unidas, dedos juntos, palma contra palma, como um suplicante do século catorze. Unidas e entaladas entre a face esquerda e o colchão. Mas os dedos mindinho e anelar da mão direita começam a ficar ligeiramente dormentes. Não quero mexer-me mas tem de ser. Levanto a mão no ar, abro e fecho abro e fecho abro e fecho, pensar-se-ia que te digo adeus. Mas não. Nunca te direi adeus meu amor, e a mão volta para o seu lugar.

Agora podes vir. Quero que desmanches a tua trança, que espalhes os cabelos louros, frisados, imensos, sobre o meu rosto, que roces os teus seios nas minhas costas, que deslizes por cima de mim, que me inundes no teu singularíssimo perfume.

Ele está a espreitar-me. Sei que está. Não preciso de abrir os olhos para sentir uma alteração na luz. Isto acontece quando ele cola a testa ao postigo de vidro fingido da minha cela para saber o que se passa aqui. Sei que ele está lá porque intercepta a luminosidade da manhã tentando certificar-se de que estou a dormir. Ele gosta que eu esteja a dormir para ter o prazer de me acordar com dois berros. Hesita. Tão quieto assim só bem desperto ou morto. Os adormecidos movem-se no sono, mastigam o cuspo, murmuram.

Enquanto o meu guarda-enfermeiro-carrasco espera que eu adormeça para me chamar em seguida, tu desvaneces-te, não queres testemunhas do nosso sagrado momento de amor. Voltarás mais tarde, talvez na primeira alvorada, para me embalares na tua nudez, na tua paixão, na tua piedade.

Agora finjo que durmo. Volto-me com um resmungo, deixo cair um fio de baba pelo canto da boca.

Ele entra.

O doutorzinho está à tua espera, lazarento.

Já ouvi falar deste novo médico que pergunta o mesmo a todos, foste violado pelo pai, abandonado pela mãe, sentes culpa na morte de um amigo. Não, não, não, respondem todos e ele fica num beco sem saída, não pode consubstanciar as suas teorias, não pode provar nada, não pode curar ninguém.

Interroga-me num gabinete demasiado pequeno com o ar condicionado no máximo e tenho frio, não consigo pensar, dar respostas coerentes, quero estar nos teus braços, beijar a tua boca de ameixa doce e sumarenta como no tempo em que, e o doutorzinho, que idade tinha quando morreram os seus pais, como é que reagiu, sente-se culpado, e eu, ninguém morreu, nunca ninguém morre, só quem nós matamos na memória, no pensamento e no coração.

claro, mas não é isso, o que perguntamos é se, tenho frio, viu o seu pai morto, a sua mãe, algum irmão, diga-nos o que sentiu senhor Pedro Santa Clara. Não senti nada, fui eu que os matei no coração no pensamento e na memória, porque tenho a memória o pensamento e o coração ocupados com outras coisas.

tente lembrar-se, não me lixem os cornos, queríamos perceber a sua infância, estou cansado, alguém abusou, vá para o caralho, doutor, com o seu Freud desenterrado, o seu plural majestático e a sua psiquiatria de compêndio, tenho a certeza de que você é que levou no cu aos seis anos, pra cima de mim não

o senhor Santa Clara não precisa de me ofender, acalme-o, senhor enfermeiro, eu

cala-te, cabrão, se não queres ir para a cela à prova de som metido numa camisa-de-forças, o senhor doutor só te quer ajudar minha besta

tenho frio, quero o colete-de-forças, este doutorzinho saído dos cueiros não percebe nada, não sabe quem eu sou

pois, já sabemos que és o D. Pedro, maluco de merda, responde ao senhor doutor, responde, responde, responde, responde

Mas eu não quero responder, não me quero tratar, só quero os teus olhos atlânticos, verdes, transparentes, senhores de todos os segredos, de todos os feitiços, de todas as paixões, tira-me daqui, leva-me, embala-me, adormece-me, deixa-me pousar a cabeça no teu colo de garça, nas tuas coxas perfumadas, começo a gritar Inês, Inês, Inês, Inês, Inês, espetam-me uma injecção ao acaso no corpo que se debate e suavemente surges do nevoeiro com a tua trança luminosa, os teus seios de nácar, as tuas ancas de deusa e ao som de cantos gregorianos que enfeitam a penumbra, deixas que me apoie na seda dos teus ombros para atravessar, mísero, estropiado e chorando, as ogivas da minha solidão.

A princípio achávamos que era apenas uma coincidência, Pedro e Inês e os seus amores contrariados, depois, com o decurso dos acontecimentos e o progresso da minha loucura comecei a pensar que eu devia ser a reencarnação de D. Pedro I, o Cru, mas agora tenho a certeza de que sou o próprio rei, o que não descansa, o que não dorme, o que arrasta a amada pelas noites fantasmagóricas do seu reino, o que manda acender fogueiras para aquecer-lhe o corpo gelado, pela morte, segreda uns, pela paixão perdida, afirmam outros.

Não me juraste tu, Inês, que nada conseguiria separar-nos? Como puderam os esbirros de meu pai pensar que te matavam, que matavam este amor sem fronteiras, sem tempo, sem espaço, materializado de onde em onde na história, na eternidade, no coração dos homens?

Somos, para sempre, da vida e da morte, para sempre, para sempre, para sempre, somos senhores do tempo, escravos do tempo, a droga que me enfiaram nas veias envolve-me agora nos seus tentáculos quentes e sábios, leva-me pelas ruas da eternidade, por onde é dantes, é depois, é agora, passado e futuro onde perenemente te encontro, te amo, te venero e te conduzo à morte e enlouqueço.

“A Trança de Inês”, Rosa Lobato Faria


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