terça-feira, 6 de julho de 2010

Se não estivesse tão doente, tão fraco, tão desistente de tudo, gostaria de escrever as minhas memórias. Deixar ao mundo mais uma história inútil, de nenhum proveito e ainda menos exemplo.

Só assim à toa, para organizar as minhas recordações, uma papelada que funcionasse como uma terapia inventada por mim mas que talvez pudesse servir a médicos vindouros, ajudando-os a conhecer a errância de uma mente descontrolada, para compreensão, quem sabe, de outros infelizes como eu.

Agora que, segundo parece, a minha família (que família?) informada do meu estado de debilidade terminal, me paga um quarto particular, pensei ter a privacidade necessária para alinhavar uns mal-amanhados apontamentos.

E foi então que soube que a minha cabeça não aguentava o esforço, que o meu coração se rasgava em todas as escarpas do tempo, que o meu cérebro confundia tudo e viajava como uma nave alucinado por todas as esquinas da desgraça e dei razão ao povo que me chamou demente, ao psiquiatra que opinou que deviam arredar-me de uma sociedade civilizada, aos juízes da universidade que me excluíram, alegando aquele fatal um ponto sete de loucura na minha desafortunada genética.

Restas-me tu.

Resta-me amar-te ainda.

Recordar, como tinhas dito, do alto da tua soberba virgindade, virá uma noite em que seremos um.

E fomos. Como desde o princípio do mundo, fomos. Como tudo, como todos, fomos. Todos e tudo. Braços. Pernas. Tentáculos. Ramos. Lianas. Raízes. Avalanche. Vendaval. Relâmpagos. Vagas em fúria. Bichos e plantas. Peixes e pássaros. Estopa e veludo. Anjos. Adolescentes. Deuses. Feiticeiros com seus filtros. Sacerdotes com seu rituais. Imperatriz e valido. Rei e concubina. Diva e favorito. Patrão e escrava. Dama e prostituto. Jus prima nocte. Macho e fêmea. Mulher e homem. Pedro e Inês.

Inês, Inês, Inês, eternamente Inês.

E eu, Pedro, rei, filho de rei, pai e avô de reis, aqui te espero jacente na minha enxerga de louco, até ao dia em que, na hora da ração, lance a minha demência sobre os carrascos do nosso amor, e os sufoque e os morda e os mate e lhes arranque com os dentes o coração do peito e me abatam como a um cão doente de raiva, de esgana, de tinha, de vermes, à porta imprudentemente aberta da minha cela almofadada e alimentem com os meus restos processados a árvore mais enfezada do planeta-floresta e espalhem o meu sangue pelas lajes perenes e silenciosas da abadia e me sepultem no mausoléu da minha impaciência donde voltarei e voltarei e voltarei pelos séculos dos séculos para seguir de rastos a tua trança entretecida de luz.

“A Trança de Inês”, Rosa Lobato Faria


Sem comentários: